
Quando somos miúdos, fazer amigos é fácil: basta uma brincadeira no recreio, um lugar ao lado na sala de aula ou uma coincidência feliz, como passear o cão na mesma rua. Não há barreiras nem formalidades, apenas uma abertura genuína ao outro.
Lembro-me que perguntávamos directamente (ainda se pergunta assim?) “Queres ser minha amiga?”, porque era só querer, dizer que sim e já se era. Não havia estratégias, jogadas de aproximação ou dúvidas existenciais. Talvez por isso as amizades de infância, quando sobrevivem ao tempo (e em geral sobrevivem), carreguem um peso tão especial.
A Joana é a minha amiga mais antiga. Conhecemos-nos na terceira classe, ainda antes de percebermos que estávamos prestes a ser da mesma turma. Ela passeava a cadela Lia, eu o meu cão Boga (já nenhum dos dois está vivo, mas cremos que a nossa amizade os honra de alguma forma). Morávamos a metros uma da outra, e estávamos destinadas a encontrar-nos.
Uma vez zangámo-nos – já não faço ideia porquê –, e a Joana passou o recreio a abraçar e a falar com árvores. Lembro-me de a observar de longe, entre a incredulidade e a admiração. Que raio de miúda era aquela, que em vez de fazer fita ou tentar resolver o conflito, preferia fazer amizade com o arvoredo do pátio da escola?
Era óbvio que estava perante a pessoa mais estranha e mais fixe que conhecia. Enquanto eu tentava caber dentro das expectativas dos outros, a Joana limitava-se a ser, não fazia fretes nem tentava impressionar ninguém (talvez por isso impressionasse).
Não, não faço ideia como fizemos as pazes, mas as nossas zangas nunca duraram muito. A nossa amizade sobreviveu às dores de crescimento, às mudanças de escola, e às diferenças inevitáveis que os anos trazem. Passámos pela adolescência juntas, e partilhámos diários, cartas e promessas de futuro. Partilhamos ainda, tudo quanto a vida contém, apesar da distância.
Sou muito grata por tê-la conhecido na altura certa. Com o tempo, fazer amigos torna-se mais complicado. Criamos filtros, expectativas, receios. Tornamo-nos mais selectivos e conscientes do peso da intimidade, do investimento emocional que a amizade exige.
A nossa amizade, contudo, já não precisa de explicação nem de prova constante. É sólida, resistente ao tempo e às estações da vida, como as árvores que a Joana abraçava. A infância é generosa nesse aspecto. Mas, se um dia a vida ameaçar afastar-nos de vez, conto que bastará abraçar uma árvore, e deixar que a árvore nos abrace às duas de volta.
canto da sereia #12
I
Quem são as tuas pessoas? Aquelas a quem recorres quando o trabalho corre mal, a relação está estranha ou a família te tira do sério? Sugiro que faças uma lista – às vezes, só de nomearmos as pessoas que estão connosco, percebemos a sorte que temos.
II
Sugestões de leitura:
On the Benefits of Friendship, de Isabelle Graw
Are You Ever Really As Close To University Friends As The Ones You’ve Known Since Childhood?, de Kamila Shamsie, na Vogue
I hope my kids have ‘forever friends’—like the ones I have, de Christine Organ, em Motherly
The importance of childhood friendships, and how to nurture them, de Lena Aburdene Derhally, no The Washington Post
Se tiverem filhos, sobrinhos ou netos, recomendo também Amigos, de Moira Irigoyen (texto) e Júlia Barata (ilustrações).
III
Fundada em 1980, o Telefone da Amizade é uma associação privada de solidariedade social, que presta apoio em crise pessoal e pensamentos suicidas. Se for preciso, fica aqui o número: 22 832 3535, todos os dias, das 16.00 às 23.00.
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Eu sinto que a amizade é sempre o lugar onde podemos voltar a ser crianças.
Eu também tenho uma Joana como a tua, única , sem pudores dos olhares , por vezes sem filtro 🤭. Na infância e adolescência foi-me muito difícil travar amizades. Na fase adulta foi quando criarei novas e duradouras, ao contrário da tendência.