Nota da editora: Juntei-me ao Clube de Escrita da Sociedade dos Poetas Vivos, fundado pela Joyce Silveira, e decidi escrever um texto-memória que respondesse aos três primeiros desafios — Amizade, Poesia e Receita. A partir de agora, se conseguir manter o ritmo, contem com um texto dentro desse âmbito todas as semanas. Em princípio, devo só publicar, sem enviar por e-mail.
A minha mãe é a melhor cozinheira do mundo. Eu sei que todos dizemos isso das nossas mães — se não com razão, ao menos com afecto —, mas a minha faz bacalhau à Brás com batatas a sério. Não, não é com Pála-Pála; é com batatas das verdadeiras, das que descasca e corta em palitos com uma paciência de Jó. E, a bem da verdade, se fosse só isso, talvez concedesse o meu exagero. A questão (ou melhor, a bênção) é que não faltam especiais no seu repertório.
Quando penso na cozinha da minha infância, lembro-me muitas vezes dos seus bolos fofos e húmidos. E de mim, sem jeito nem vocação, a besuntar-lhe as formas. Afundava os dedos na manteiga e depois untava com cuidado as curvas e as contracurvas do alumínio. As mãos ficavam gordurosas e brilhantes, e eu sentia-me útil, como se o meu gesto desajeitado, mas cerimonial, fosse essencial para o sucesso da receita. Talvez fosse. Talvez ainda seja.
Para dizer a verdade, não unto formas há pelo menos um ano. Vivemos longe uma da outra e não nos conseguimos juntar no último Natal: eu estava grávida, uma gravidez de risco, e não pude viajar. Senti-lhe a falta, claro. No toque, mas também à mesa. Como disse, nunca tive talento para a cozinha. Uma vez consegui a proeza de fazer arroz saber a pipoca. Agora, com o forno avariado há mais tempo do que tenho coragem de confessar, já nem posso dizer que tenho uma especialidade.
(A minha especialidade são cogumelos Portobello recheados. A receita foi-me ensinada pela minha amiga Rita. Depois de limpar os cogumelos com uma folha de papel-toalha, retiramos o caule e raspamos com uma colher o interior, para descartar as guelras pretas e rechearmos a gosto. Eu costumo pôr linguiça, espargos, tomate cherry e queijo. Tempero com sal, alho em pó, pimenta e um fio de azeite. O resto – quantidades, tempo, temperatura – é tudo a olho. Não é sempre?)
A minha mãe diz que cozinhar no forno não é cozinhar. Mas eu não sei fazer muito mais que isso. Umas massas, uns bifes, uns ovos estrelados, e é melhor não inventar muito. A habilidade saltou uma geração. (A minha avó materna também era maestrina de tachos e panelas, e fazia os pratos favoritos de toda a gente. Se ao jantar um queria comer uma coisa e outro outra, ela fazia as duas.) E eu adorava, juro que adorava, ser essa pessoa para a minha família e amigos, mas prevejo um desfecho trágico se ousar sequer tentar.
Talvez, quem sabe, a minha filha tenha esse condão. As receitas, vou tentar reuni-las. As do meu lado, e as do lado do João, da mãe e das avós, que já cá não estão, mas deixaram papéis e papéis de receitas. Se não as conseguir pôr em prática, ao menos preservo-as num livro bonito. (A minha prima Beatriz fez várias sessões fotográficas para um livro de receitas de família que andava a montar com o filho da madrasta. Um dia gostava de fazer o mesmo.)
É que cozinharmos para quem gostamos é, talvez, uma das formas mais tangíveis de dizer “amo-te” sem abrir a boca. É um cuidado que se manifesta em lume brando, em colheres de prova, em pratos que chegam à mesa ainda a fumegar. Não é preciso ser chef, nem dominar o ponto exacto do risoto ou saber fazer molhos xpto. Às vezes, basta um prato de arroz soltinho ou um bolo com o centro ligeiramente afundado.
(Ou bater à porta de uma mãe no puerpério com sacos cheios de refeições em tupperwares. Como fez a namorada do meu irmão, que me salvou de um esgotamento com lasanha caseira. A melhor lasanha que já comi na vida. Obrigada Joana. Ou a minha amiga Sónia, que pôs o namorado a cozinhar-nos uma bolonhesa incrível e me ofereceu pão a sério. Obrigada miúda. Ou o meu cunhado, que também nos fez comida para que nos pudéssemos concentrar em cuidar da nossa filha recém-nascida. Obrigada Pedro.)
Na cozinha, o amor (o romântico e o amigo) ganha corpo: tem cheiro, cor, sabor, textura. É um acto de presença — estou aqui, pensei em ti, fiz isto com as mãos. Mesmo quando a vida está desarrumada, mesmo quando não há muito mais para dar, podemos ainda pôr uma sopa ao lume. Há quem peça desculpa com um tacho de arroz-doce. Há quem declare saudade com um assado ao domingo. Há quem diga “fica” servindo a última fatia de bolo.
Como não sei fazer bolos, ofereço-vos uma quadra. Afinal, a poesia também se come:
Bolo quente a derreter,
cheira a casa e a carinho,
cada fatia é prazer
servido num pratinho.
Nhom-nhom.
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adorei a forma que você juntou os três temas... e que texto lindo, dá pra ver e sentir o amor através de suas palavras
Ficou muito boa a inclusão dos três temas num único texto. 👏👏👏
E a quadrinha: adorei! ☺️