cuidado com o canto da sereia
Avisam, com medo de mulheres que não se calam. Mas eu, que fui uma bebé excepcionalmente silenciosa, tenho agora tanto por dizer.

A expressão popular «canto da sereia» refere-se a um “discurso ou acção para atrair, geralmente para uma armadilha”, e evoca a figura mitológica – um monstro traiçoeiro, metade mulher, metade ave ou peixe1 –, que personificaria os perigos do mar, do desconhecido e, mais tarde, claro, da sexualidade feminina.
Dizem as más línguas que as sereias levavam marinheiros2 (marinheiras não sei) a naufragar. Crer avistá-las é mau agouro.
Como é óbvio, não te quero levar a naufragar. À partida, também não estás a ler isto num cruzeiro (quer dizer, se estiveres, boa para ti: estive num aos 14 anos e sempre quis lá voltar). Mas, dizia, gostava de desconstruir este preconceito para com as sereias e as mulheres, sobretudo as que não se calam3.
Este ano, fui à Livraria Bertrand, no centro comercial Amoreiras, para conversar com a escritora Patrícia Reis4, que me disse que “ninguém aprecia uma mulher que não se cala”. Fiquei a pensar nisto e em como, ao longo da minha vida, eu – que fui uma bebé de tal maneira silenciosa que a minha mãe se levantava a meio da noite só para confirmar que ainda respirava – me senti muitas vezes desadequada.
Desadequada por falar pelos cotovelos e não me aperceber imediatamente que, talvez, os outros não partilham do mesmo interesse. Desadequada por ter uma cara que é uma tela (as minhas emoções transparecem no meu rosto sem que seja capaz de as controlar). Desadequada por, apesar de sofrer de uma síndrome aguda de people-pleasing5, ser impulsiva na forma como me expresso, sobretudo em relação a coisas que me provocam grandes emoções (o que, honestamente, é quase tudo, porque sou como as crianças, deslumbro-me e comovo-me em excesso).
Nem sempre as minhas opiniões, mesmo quando positivas e entusiasmadas, são bem recebidas. É sempre angustiante perceber que as pessoas nos interpretam mal ou, pior, nos vêem como somos e não gostam. Mas isso, por mais triste que seja, faz parte de estar viva. Não há grande coisa a fazer. A não ser, claro, partilhar os meus pensamentos intrusivos (o que é que podia ter dito ou feito de diferente, será que estou só a ser paranóica), e esperar que alguém se relacione, que pense ‘afinal não sou nenhum E.T.’(e se fossemos, que mal viria ao mundo?).
O que quero eu dizer? Que talvez esteja na hora de exorcizar as minhas inquietações, de registar o dia-a-dia (não o meu em particular, mas o do mundo, através dos meus olhos) e de construir comunidade. É mais ou menos para isto que esta newsletter com potencial de improviso poderá servir. Sem compromisso temático nem intenções de me cingir a um só formato, reinvindico liberdade criativa e de pensamento, o que inclui espaço para experimentação multimédia.
Tenciono escrever-vos (e trazer novas ilustrações, colagens, animações, et cetera) pelo menos uma vez por mês. Mas, porque a vida é o que nos acontece enquanto fazemos planos, faço questão de deixar a porta aberta para visitas surpresa ou hiatos prolongados.
Idealmente teria começado isto em Janeiro (o que passou, não o que aí vem6), mas atirar-me a este projecto no final do ano (de mais um ano) permite-me pôr em prática a máxima do ‘vamos sempre a tempo’, o que para alguém com queda para procrastinar é uma fonte de grande alívio. Procrastinar, aliás, tem os seus benefícios e está comprovado cientificamente que, quem se distrai enquanto adia tarefas, apresenta soluções mais originais.
“Para começar a agir é preciso primeiro ter a cabeça em completo sossego, sem nenhuma réstia de dúvida”, diz o Homem subterrâneo de Fiódor Dostoiévski em Notas do Subterrâneo (1864).
Não sei se tenho a cabeça em completo sossego. Na verdade, escrevo-vos em estado de graça e, se tudo correr bem, daqui a sensivelmente um mês estarei a braços (e em abraços) com um novo ser. Mas não me restam dúvidas de que, dentro ou fora da redacção, escrever é o que sei fazer melhor, por isso aqui vai.
A minha vontade é partilhar, por um lado, pensamentos e observações – do mais mundano ao mais profundo –; e, por outro, recomendações – o que ando a ouvir, o que ando a ler, o que ando a fazer em casa e na cidade. Pelo caminho, talvez o que tenho para dizer faça sentido para ti ou possas mesmo retirar algo de valioso do meu exercício de escrita.
canto da sereia #1
I
Não sei se ser Peixes, signo de Água, e ter crescido junto à costa algarvia contribuiu ou não para isso, mas sempre me senti uma “mulher à beira-mar”, com uma forte ligação ao elemento e aos mitos em seu entorno.
As mouras encantadas dos folclores português e galego são seres femininos com poderes sobrenaturais. Geralmente guardam tesouros ou surgem cantando e penteando os cabelos, com a parte inferior do corpo em forma de serpentina.
Nas lendas ibéricas7, as mouras – deixadas a proteger tesouros escondidos por mouros antes de partirem para a mourama ou abandonadas pela família por se terem apaixonado por homens cristãos – procuram, por vezes, libertar-se do seu sofrimento, e tomam a iniciativa de confrontar os humanos com os seus medos e anseios.
Entre as lendas algarvias, a da bela Floripes, que surge em noites de lua cheia para exigir aos mareantes de Olhão provas de bravura, é das mais conhecidas. Existe inclusive uma longa-metragem portuguesa, Floripes (2007), de Miguel Gonçalves Mendes, que está disponível no Youtube.
Isto tudo para dizer que a imagem de uma moura encantada em sofrimento, cuja salvação está dependente da boa vontade de um transeunte, ainda hoje me desassossega.
II
O portuense Júlio Dinis (1839-1871) tem um livro chamado O Canto da Sereia (1947)8. A narrativa decorre na praia do Furadouro, em Ovar, e envolve ti’Cabaça, um velho pescador que conta a história de uma sereia que, no tempo do seu bisavô, teria sido trazida até ali, nas redes dos pescadores; e o jovem pescador Pedro do Ramires, inquieto, hipersensível, possuidor «de instintos de poeta», que, tendo já ouvido o canto de uma sereia, sucumbe ao seu encanto.
O paulista Nelson Motta também. Publicado em 2002 (e editado em Portugal em 2005), trata-se de um noir baiano, passado em Salvador, capital da Bahia, que acompanha a investigação do assassinato da musa do carnaval, em plena terça-feira gorda. O ponto de vista é de Augustão, um detective particular que não vive sem sexo, drogas e afro-jazz, e procura descobrir quem teria motivos para matar a linda Sereia, que se tornara uma estrela exuberante do pop nacional aos 22 anos.
Cruzei-me com o primeiro livro durante uma pesquisa na Internet, mas lembro-me de ver o segundo pela primeira vez há muitos anos, na biblioteca da minha escola secundária. Acho que o cheguei a requisitar, porque me lembro de estranhar o português do Brasil (nunca tinha lido nada sem ser em português europeu), mas confesso não recordar com que impressão fiquei da história.
III
Estávamos em 1993 quando, no seio da Universidade de Coimbra, nasceram as Mondeguinas. Contra os ecos do conservadorismo, deram voz a um projecto que marca a presença das mulheres na Academia coimbrã. Desde então e até hoje, por entre temas originais e a divulgação da música popular e tradicional de várias regiões do país, o grupo académico organiza o festival de tunas femininas Canto da Sereia, que comemorou 30 anos de história em 2023.
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Na Grécia Antiga, as sereias eram representadas como aves com cabeça humana. Só na Idade Média começaram a ser retratadas com uma cauda de peixe, em vez de pernas de pássaro. Li por aí que a primeira descrição das sereias como as imaginamos hoje é da autoria de um monge da Abadia de Malmesbury por volta de 680 d.C. Para o Cristianismo, estas criaturas hibrídas personificavam o pecado, a vaidade e a luxúria, razão porque são relativamente comuns na arte sacra.
Só um homem hétero-cis-normativo poderia ser levado à loucura assim que um monstro-mulher-peixe ousa fazer-se ouvir. A propósito, duas sugestões de leitura: Woman’s Lore. 4000 Years of Sirens, Serpents and Succubi, de Sarah Clegg, e o poema Siren Song, de Margaret Atwood.
Em 2020, a jornalista Aline Flor escreveu no jornal Público um artigo sobre o projecto Brasileiras não se calam, cuja leitura aproveito também para recomendar.
Entrevistei Patrícia Reis a propósito do lançamento de A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta (Contraponto, 2024) e da rubrica Páginas Tantas da edição de Primavera 2024 da revista trimestral Time Out Lisboa, para a qual aceitou montar uma pilha de livros.
Recomendo a leitura de How to Stop Caring About Being 'Cool' + Well-Liked?, da artista visual e produtora de conteúdos Violet Clair, que assina a newsletter Friend Group Reject e me faz sentir vista.
Quando escrevi a primeira versão deste post, ainda nem sequer estava grávida, portanto imaginem as voltas que este texto já deu.
Quando estava a pesquisar sobre o mito das sereias e a sua relação com as lendas das mouras encantadas, encontrei A Sereia na História e na Lenda (1952), de Fernando de Castro Pires de Lima, à venda na Livraria Alfarrabista Manuel Ferreira. Além do bonito desenho alegórico na capa da brochura, parece-me uma leitura curiosa.
A Editora Caleidoscópio editou em 2021 uma versão cartonada de O Canto da Sereia de Júlio Dinis. E aparentemente há um filme baseado no conto, uma adaptação livre por Noémia Delgado, que está disponível em duas partes nos arquivos da RTP.
Ainda há pouco tempo falei com uma amiga que já passou os 40 (como eu) e ainda se debatia com o facto de nem toda a gente gostar dela. Numa sessão de terapia, o terapeuta perguntou-lhe "gosta de toda as pessoas que conhece?". Teve de responder que não e percebeu que não podia ter um critério duplo.
Talvez sirva isto para dizer que não me parece que sejas um ET. Tudo a correr bem nos últimos dias de espera pela Teresinha - lindo nome, igual ao da minha mãe (e da minha sogra)
Cruzei-me agora com este teu texto e adorei ler :) também sinto uma ligação especial às sereias por ser Peixes eheheheh e obrigada pelas tuas recomendações, vou pôr essa biografia da Maria Teresa Horta na minha lista <3