“Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo.”
— Sophia de Mello Breyner Andersen (1974)
Gostava de poder dizer que o meu avô Chico viveu a ditadura de peito feito e punho erguido. Que era um rebelde de bigode espesso e ideias afiadas. Que distribuía panfletos às escondidas, passava livros de mão em mão antes que a censura os engolisse, sintonizava uma rádio clandestina com o volume no mínimo e o coração ao rubro. Mas a verdade é que nunca tive um avô Chico (ou uma avô Maria).
As minhas avós morreram ambas ainda eu não era capaz de criar memórias com elas1, e o meu avô materno, Joaquim, antes de eu saber falar. O paterno, Leonel, é retornado e, se alguma vez me falou de Abril, não me recordo. Na minha família, a revolução ficou por dizer. O que me chegou foi o silêncio — um silêncio que me levou a crer, durante anos, que a liberdade sempre ali estivera. Como se não tivesse havido um antes, e o amanhã não estivesse, ainda hoje, por fazer.
Foi na escola, que ainda garota, ouvi falar da ditadura. Mas a “censura”, a “guerra colonial”, o “pedir autorização ao marido” soavam-me a coisa de museu (ao lado do carro de bois e da tv a preto e branco), cabiam nos manuais, não na vida. A primeira vez que desci a Avenida da Liberdade no 25 de Abril já era adulta. Fui por acaso, não me lembro quem me arrastou (porventura uma amiga ou amigo da faculdade). Recordo antes o cheiro das flores, o som dos cartazes a rasgar o ar, as pernas das crianças a pender dos ombros dos adultos, a “Grândola, Vila Morena” entoada com fervor.
“Grândola, Vila Morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, Vila Morena
Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, Vila Morena
Terra da fraternidade
Terra da fraternidade
Grândola, Vila Morena
Em cada rosto, igualdade
O povo é quem mais ordena
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola, a tua vontade
Grândola, a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade”
— José Afonso
Só ali, no meio do barulho e da festa, da celebração feita aviso, percebi que o 25 de Abril não é um lugar de chegada. É um ponto de partida. Um verbo em andamento, com muitos tempos compostos e subjuntivos2. E o que parecia história longínqua era, afinal, matéria viva. Não uma memória, mas uma prática. Talvez seja isso o que mais me comove: o corpo colectivo. Um corpo que avança — mesmo quando tropeça —, num país que ainda está a aprender a ser livre, justo, plural.
Hoje, é esse corpo que me leva. Hoje, é com ele que quero ensinar à minha filha que a liberdade não é mais herança que gesto. E que se cuida todos os dias, como quem rega uma flor. E que, às vezes, basta ser. Este Abril, sê, faz-te. Desce à rua3. Leva um cravo, ou dois, que um é sempre para oferecer. E, se puderes, escreve-me: quem te contou Abril? Ou foste tu que o descobriste, como eu — pela televisão, pela escola, pelas ruas?
canto da sereia, especial 2
I
Na música em cima, Luís Cília canta É preciso avisar…, um poema de João Apolinário. Mas há outra canção de que gosto muito — “Teresa Torga”, de José Afonso — que diz assim:
“No centro da Avenida
No cruzamento da rua
Às quatro em ponto perdida
Dançava uma mulher nua
A gente que via a cena
Correu para junto dela
No intuito de vesti-la
Mas surge António Capela
Que aproveitando a barbuda
Só pensa em fotografá-la
Mulher na democracia
Não é biombo de sala
Dizem que se chama Teresa
Seu nome é Teresa Torga
Muda o pick-up em Benfica
Atura a malta da borga
Aluga quartos de casa
Mas já foi primeira estrela
Agora é modelo à força
Que o diga António Capela
T'resa Torga T'resa Torga
Vencida numa fornalha
Não há bandeira sem luta
Não há luta sem batalha”
II
Estávamos em 2023 quando a Marta Nunes, que também anda por aqui, fez uma ilustração diária sobre os direitos e as conquistas de Abril. São todas muito bonitas, e valem a pena contemplar. (E estou a pensar seriamente em mandar vir este tote-bag.)
III
A minha amiga Sónia também já escreveu sobre Abril. Recomendo a leitura de Não sei ser senão livr_, que conta com uma ilustração feita por mim.
IV
Para terminar, recomendo uma série de títulos, para grandes e pequenos, para adicionar à estante lá de casa.
Estes já li4:
Avó, Onde Estavas no 25 de Abril?, de Ana Markl (texto) e Christina Casnellie (ilustração) (Lilliput, 14,95€). Na estreia de Ana Markl na literatura infantil, um rapazinho curioso vai tentar aprender mais sobre a Revolução dos Cravos e descobrir o que é que a sua avó quer dizer quando diz que “não foi para isto que se fez o 25 de Abril!”;
25 Mulheres, de Raquel Costa (texto e ilustração) (Oficina do Livro, 14,50€). Apesar de não ser exactamente sobre o 25 de Abril, também se debruça sobre a sociedade portuguesa nas décadas de 1960 e 1970 e é sobretudo sobre como a revolução também se faz no feminino;
Estes quero ler:
Histórias de Vida da Luta Armada Antes e Depois do 25 de Abril, de Raquel Beleza da Silva (texto) (Tinta-da-China, 17,90€). Baseado em extensas entrevistas, este estudo fala‑nos de pessoas outrora comprometidas com a transformação política através de meios violentos em Portugal;
Por Enquanto, o Povo Unido Ainda Não Foi Vencido, de Manuel Vázquez Montalbán (texto) (Tinta-da-China, 16,90€). Crónicas sobre a revolução (1974-75) de uma das vozes da oposição comunista com maior presença nas páginas de jornais e nos escaparates das livrarias;
25 de Abril – No Princípio Era o Verbo, de Manuel S. Fonseca (texto) e Nuno Saraiva (ilustração) (Guerra & Paz, 16€). Com humor, retrata-se a vertigem da noite de 24 e da manhã e tarde do 25 de Abril de 1974.
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Sei que eram ambas revolucionárias à sua maneira. Mas isso é uma história para outra altura.
Em português, o modo subjuntivo, também conhecido como conjuntivo, é um modo verbal que expressa acções incertas, hipotéticas, ou não realizadas, como desejos, dúvidas, condições e possibilidades.
Por mim também, que tenho a miúda com febre de ter ido levar as vacinas dos dois meses.
Se carregarem nos títulos, vão parar aos textos que escrevi sobre os livros para a Time Out Lisboa.
Obrigada Raquel, que Abril nos faça sempre caminhar em conjunto ❤️
Recomendo este livro, que comprei para mim e para as filhas: https://tigrepapel.pt/loja/historia/elas-estiveram-nas-prisoes-do-fascismo/