
Foi por um acaso que me cruzei com o nó na cabeça de Nara Gonçalves, e este texto que escreveu sobre as casas onde morou e “as memórias que não mudam de endereço”. Agora — que procuro uma casa na qual a minha filha Teresa possa crescer com espaço, mas sobretudo com luz —, parece-me oportuno recordar as casas, e os quartos, que me fizeram. Não apenas os lugares, mas sobretudo as memórias que ainda habitam neles, ou que habitam em mim a partir da memória deles.
UM APARTAMENTO NA VILA DA PAREDE, CASCAIS
Era um terceiro andar, com um café logo à porta e uma espécie de banco de pedra onde, num dia de sol qualquer, assisti ao atropelamento do meu irmão. Eu brincava com as minhas Barbie e segurava um elástico cor-de-rosa que ele quis emprestado. Recusei. Furioso, disparou na direcção oposta e foi atingido por um carro que entrou na zona residencial demasiado depressa. Um adolescente que já esqueci — nome e rosto varridos pela passagem do tempo — foi quem o socorreu. O meu irmão sobreviveu, mas ficou com uma cicatriz no lábio superior. A culpa silenciosa desse dia, essa mora comigo.
Foi também nessa casa que tive a primeira festa de aniversário de que me lembro. Imagino que tenha havido bolo, velas e balões, mas o que ficou foi a sensação de que aquele dia era só meu, e de que a casa estava cheia de gente que gostava de mim. No dia seguinte, alguém bateu à porta. Era a avó de uma colega da escola, que se enganara na data e a trouxera para a festa… um dia depois. Só que não era uma colega qualquer — era a colega de que eu menos gostava, a abelha-rainha da turma. Ainda considerei fingir que não estava em casa. Brincámos a tarde toda, não sei bem a quê. Antes, com o seu habitual ar de nojo, olhou para o meu quarto e disse: “Está uma desarrumação, a minha mãe não me deixa ter o meu assim.”
UMA MORADIA EM TAVIRA, NO ALGARVE
Mudámo-nos quando eu andava na terceira classe. O meus pais ainda lá vivem, mas agora só os visito no Verão, para estadias prolongadas que me fazem sentir temporária naquilo que já foi permanente.
O quarto que partilhei com o meu irmão durante 18 anos era um espaço minúsculo que mal comportava um beliche e uma secretária (por cima das nossas cabeças, os meus pais construíram uma estante a toda a volta). Não havia lugar para grandes segredos, mas havia cumplicidade — mesmo quando discutíamos por coisas ridículas. Hoje, no lugar do beliche, há apenas uma cama, e o quarto parece-me encolhido (se calhar fui só eu que cresci).
Foi nessa casa que aprendi a gostar do som das cigarras nas noites abafadas de Agosto, que me apaixonei pela ideia de fugir para Lisboa (primeiro para Nova Iorque, depois para Londres, depois para Lisboa… o sonho foi ficando mais pequenino à medida que fui chocando com a realidade), e que comecei a escrever, primeiro nos cadernos da escola, depois em diários que nunca terminava. (Continuo a não chegar ao fim de nenhum dos meus cadernos.)
É uma casa numa rua de casas, com estrada à frente e outras casas atrás. À frente, há um largo com uma igreja. Durante anos, acordei ao som de sinos e procissões. Ainda me lembro das vozes em canto litúrgico, e de como foi também nessa igreja, há pouco mais de dois anos, que assisti ao funeral da mãe da minha melhor amiga. Já tinha ido a funerais, mas nunca com 29 anos e cada vez mais consciência da finitude da vida.
Hoje conto os dias para lá levar a Teresa pela primeira vez. Quero que os meus pais a segurem nos braços no mesmo lugar onde tantas vezes me seguraram a mim. Quero atravessar com ela a porta de casa, como eu fazia depois da escola, de mochila às costas e um mundo para contar. Quero levá-la ao largo, ouvir junto os sinos da igreja e perceber se o som ainda me acorda memórias antigas. Pergunto-me se ela também vai sentir que, de alguma forma, aquele lugar lhe pertence.
A RESIDÊNCIA DE ESTUDANTES EM CAMPOLIDE, LISBOA
Durante cinco anos, chamei “casa” a um espaço partilhado. Três anos de licenciatura e dois de mestrado, sempre no quarto 203. O que faltava em privacidade sobrava em histórias.
A minha primeira colega de quarto foi a Tânia, uma estudante de antropologia, que foi como uma irmã mais velha. Depois veio a Sónia, que se tornou minha amiga para a vida. Por fim, uma caloira de Ciências da Comunicação, que me manteve entretida com relatos dos seus encontros escaldantes com diferentes membros de uma mesma banda. Nunca percebi bem a matemática daquilo, mas as suas aventuras eram melhores do que qualquer série que víssemos no portátil antes de dormir.
Foi na residência de estudantes que me apaixonei pela primeira vez — por um estudante de medicina três anos mais velho, que tinha o charme do McDreamy da Anatomia de Grey (a paixão era tão grande que lhe cheguei a dizer que aceitava se me pedisse em casamento). Foi também onde vivi muitas outras primeiras vezes… Cresci muito naquele quarto minúsculo — mas, mais importante, sobrevivi às dores de crescimento. (E às coisas embaraçosas que fiz e disse, e que espero que ninguém se lembre.)
A CASA COM JARDIM NA ENCARNAÇÃO, LISBOA
Foi a primeira casa onde morei depois de terminar o mestrado. Uma casa térrea, com um pequeno jardim onde cresciam ervas daninhas.
A janela da cozinha dava para o jardim. No peitoril, coloquei uma Citrina1. Ainda me lembro do dia em que a planta chegou, o entusiasmo palpável como se tivesse acontecido há cinco minutos.
Partilhava o espaço com duas raparigas cujos nomes já não recordo. Sei que uma era designer e a outra, médica ou enfermeira — nunca tive a certeza, porque falava pouco sobre o trabalho e chegava sempre tarde. Não éramos amigas, mas também nunca fomos estranhas. Partilhávamos contas e a ocasional conversa na cozinha, geralmente sobre quem se tinha esquecido de comprar detergente.
No último mês em que lá vivi, adoptei um gato. Baptizei-o de Hubble como o telescópio, mas depois de descobrir que era um demónio (a sério, era mesmo…), levei-o para casa dos meus pais (que já tinham dois gatos e estavam convencidos que era eu a exagerar) e a minha mãe rebaptizou-o de Covid (foi durante a pandemia e a minha mãe acha que tem muita graça). Apesar de continuar a ser um demónio, o Hubble/Covid agora tem uma companhia felina que o refria dos seus comportamentos psicopatas (uma vez atirou-se à minha cara e deixou-me uma marca na bochecha durante duas semanas).
UM RÉS-DO-CHÃO NA AMADORA
Foi a maior casa onde vivi até hoje. Um rés-do-chão enorme, com quatro quartos, todos com varandas interiores. Mas nunca cheguei a usufruir de todo o seu potencial. A casa é de uma tia e eu não me dei ao trabalho de investir em obras nem decoração. Entretanto, depois de sair, viveu lá uma prima que até paredes mandou abaixo. Ficou tudo muito bonito, digno de catálogo, e ainda hoje sonho em arranjar um espaço assim.
Começámos por ser cinco: eu, o meu irmão, um casal amigo e um estudante de teatro que se revelou esquizofrénico (uma história para outra altura). Mas chegámos a ser seis, quando o estudante desapareceu do nada e alugámos o quarto vago a um segundo casal. Fiquei vacinada para a vida no que diz respeito a partilhar casa com mais de duas pessoas.
UM PRÉDIO FAMILIAR EM ARROIOS, LISBOA
A casa onde moro pertence à família do meu namorado. É uma de três num prédio antigo, habitado por muitas, tantas memórias que não me pertencem, mas que tenho vindo, que vou apreendendo aos poucos. Vivemos no rés-do-chão, num apartamento com apenas duas janelas — nos dias cinzentos, acendemos o candeeiro da sala mais cedo.
Mudei-me para cá durante a pandemia. Não aconteceu de uma vez, foi acontecendo, até um dia perceber que queria ficar para sempre. Não na casa, com a pessoa. Mas não se costuma dizer que há pessoas que são casas?
Fiz da pessoa e da casa minhas. Transformei um antigo quarto de criança no meu escritório, depois desfiz o escritório e transformei novamente num quarto de criança.
Desde que a Teresa nasceu, sinto que lhe falta o ar, a claridade. Sei que, um dia, ela vai querer correr sem esbarrar em móveis, e eu quero muito que ela cresça sem sentir que o mundo termina onde as paredes acabam.
Não sei se haverá próxima, nem quando nem como. Mas gostava que fosse na cidade ou estivesse à distância de um metro ou de um comboio. Imagino um T3, com janelas em todas as divisões e espaço para uma horta (não precisa de ser no exterior, uma horta em casa serve perfeitamente). Um dos quartos daria lugar a uma biblioteca, com estantes até ao tecto e uma daquelas escadas que deslizam de um lado para o outro. Será uma casa onde se brinca e se conversa e se partilha muito.
E tu, que me lês, que casas te fizeram? Que lugares ainda habitam em ti? Que lugares preferias esquecer? A que lugares gostavas de regressar?
canto da sereia #15
I
A habitação é uma necessidade humana básica e um direito humano universal. Mas, em Portugal, há cerca de 700 mil famílias (aproximadamente 2 milhões de pessoas) a viver na pobreza e apenas 120 mil casas públicas de renda social.
Se quiseres contribuir para a luta pelo direito à habitação e à cidade, podes apoiar associações como a Habita, que reinvindica, por exemplo, o fim dos despejos sem alternativas dignas e dos incentivos públicos à especulação; e o Movimento Referendo pela Habitação, que pretende mobilizar a população de Lisboa para um referendo local pelo direito à habitação.
Recomendo ainda este artigo de Brito Guterres, que denuncia a forma como famílias estão em risco por não conseguirem arranjar habitação acessível.
II
Depois de escrever sobre as casas que me fizeram, decidi tentar perceber se havia mais textos dedicados à temática. Encontrei este de Thamiris. Partilho um excerto:
“Chego ao final desse texto, e coincidentemente faltam poucos dias para dar tchau para a oitava casa e rodar a chave da nona. Eu queria dizer nona e última, mas não posso garantir isso nem pra você e nem pra mim. O que eu posso te contar, e até mesmo te fazer um carinho no coração, é que quando você se descobrir casa, podem vir mil e uma outras, mas você ficará, mesmo depois de passar por todas elas.”
Encontrei também este, escrito pelo João Salazar Braga, que nos fala sobre De que são feitas as casas?.
“As casas são como as pessoas, porque também estão sempre em remodelações.”
III
Já Onde Moram as Casas (Caminho, 9€), de Carla Maia de Almeida (texto) e Alexandre Esgaio (ilustração), fala-nos dos locais onde vivemos como espelho do que somos, individual e colectivamente. “Se as pessoas moram nas casas, não é menos verdade que as casas moram nas pessoas, e que, longe de ser algo fútil, mundano ou descartável, o que guardamos e o que fazemos das nossas casas é indicativo do caminho que seguimos, enquanto pessoas, no mundo.”
Também recomendo A Casa Azul de Phoebe Wahl (Orfeu Mini, 14,50€), Casa de Carson Ellis (Orfeu Mini, 16€) e A Casa das Coisas de Rachel Caiano e João Pedro Messéder (Caminho, 7,99€-12,90€).
IV
Outros livros sobre o tema para adicionar à estante:
The House That Made Me. Writers Reflect on the Places and People that Defined Them, de Grant Jarrett (SparkPress);
All The Houses I’ve Ever Lived In. Finding Home in a System that Fails Us, de Kieran Yates (Simon & Schuster UK);
At Home: A Short History of Private Life, de Bill Bryson (Transworld).
V
Para terminar, um poema.
“Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas”– Ruy Belo, em País Possível (1973)
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"Não aconteceu de uma vez, foi acontecendo, até um dia perceber que queria ficar para sempre. Não na casa, com a pessoa. Mas não se costuma dizer que há pessoas que são casas?" — Esta frase tocou-me. E muito! Não só por refletir o que têm sido os meus últimos meses, mas sobretudo por reforçar que "há pesosas que são casa". O JR é uma casa e tanto, nunca me senti tão eu com ele... Onde quer que estejamos, estaremos sempre acolhidos.
Que texto maravilhoso, Raquel. Só lamento estar a lê-lo quase um mês depois.