
Estávamos em 2024 quando li The Book Eaters de Sunyi Dean (ainda sem tradução para português1), e aqui estou eu, ainda a ruminar na trama. Imaginem o que seria se de facto devorássemos livros — se as histórias que consumimos, que nos dão a consumir, fossem, em vez de escapadinhas metafóricas, uma forma de sustento.
No livro, o acto de consumir livros assume uma dimensão física e emocional profunda. As personagens estão literalmente a nutrir-se de histórias, mas o que isso lhes dá, ou o que lhes tira, é muito mais do que simples conhecimento ou prazer. É antes uma questão de controlo e de identidade.
Devon, a protagonista, começa por não ter qualquer controlo sobre o que lê. A sua dieta é criteriosamente escolhida pelo patriarca da família: contos de fadas e outras histórias cautelares. Textos que a ensinam a servir os outros, a fugir dos monstros com dentes afiados, a abrir os braços aos monstros que têm cavalos brancos e fatos bonitos.
Não é coisa de fantasia. A História e as histórias que nos contam, e nas quais decidimos ou não acreditar, definem quem somos e como nos posicionamos no mundo e em relação aos outros — alimentam-nos de ideias, de valores e de verdades. Mas muitas vezes o que nos “nutre” é sugestão (ou exigência) de terceiros: família, escola, religião, meios de comunicação, algoritmos.
E nós mastigamos sem questionar.
É o que acontece com Devon, que começa por ser alimentada por mensagens que, longe de a empoderarem, a mantêm dócil, contida, funcional. Só à medida que a dúvida se instala, como uma nova, e incontrolável fome, é que o seu cardápio começa a mudar. Percebe então, tal como o leitor, como as narrativas em que acreditamos são tanto ferramentas de opressão como instrumentos de libertação.
Tenho pensado muito nisto. Nas histórias que nos vendem. Nas que consumimos. Nas que damos a consumir. E em como, neste mundo em permanente aceleração, é tão difícil parar para fazer perguntas: quem escolheu esta história? a quem serve? o que me está a ensinar a aceitar?
Nem sempre temos tempo ou coragem para recusar o prato. A rotina exige refeições e digestões rápidas. A fadiga urbana2 deixa pouco espaço para o pensamento crítico. Mas talvez devêssemos, de vez em quando, empurrá-lo para o lado. Ou, como Devon, fazer um esforço para curar o nosso próprio menu.
É que o que The Book Eaters me relembrou, entre outras coisas, é que todas as histórias são políticas3. Que aquilo que consumimos, mesmo em silêncio, mesmo por hábito, acaba sempre por nos escrever de volta. Mas, e se fossemos capazes de imaginar diferente? E se fizéssemos por isso?
canto da sereia #24
I
Não concordo com todas as ideias apresentadas4, mas ainda assim recomendo este discurso do Richard Zimler sobre a importância de contar histórias.
II
Ultimamente ando obcecada com encontrar e ler livros sobre escrita e literatura, e a propósito desta edição da newsletter aqui ficam mais uns quantos títulos que tenciono comprar para ler no Kobo:
The Poet X, de Elizabeth Acevedo (ficção)
The Last Cuentista, de Donna Barba Higuera (ficção)
The Writing Life, de Annie Dillard (não-ficção)
In the Margins: On the Pleasures of Reading and Writing, de Elena Ferrante (não-ficção)
Ex Libris: Confessions of a Common Reader, de Anne Fadiman
A History of Reading, de Alberto Manguel
III
Voltei finalmente a ouvir podcasts sobre livros e aceito recomendações. Entretanto, recomendo este episódio do programa Biblioteca de Bolso, com o escritor e editor Francisco José Viegas.
Tenho cá em casa o Melancholia e estou com imensa vontade de o ler, mas se calhar vou ter de comprar o ebook.
IV
Leituras recentes que fiz no Substack e que recomendo:
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Adorava ver este livro traduzido. É um dos livros da minha vida.
Recomendo a leitura do artigo de Nicolau Ferreira, Já nascemos a viver o stress das cidades e isso pode agravar as doenças mentais, no jornal Público.
“A história é política porque implica sempre escolher, na frequentação dos arquivos, o que se vai transformar em fonte e o que dela vai jorrar.” (História e política, ou a arte de fazer escolhas, Estudos Ibero-Americanos, vol. 45, núm. 3, pp. 186-191, 2019, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).
Nomeadamente com a ideia de que “romances de amor” são má literatura, ou que banda desenhada e livros como o The Hunger Games são só para adolescentes e pré-adolescentes.
Este texto deixou-me a pensar nas histórias com que cresci… e no quanto ainda me alimentam em determinados momentos . Às vezes damos por nós com fome de outras narrativas, mas sem saber bem por onde começar. Tal como o corpo, que nos leva a comer o que está em falta, também a mente e a alma precisam de nutrientes certos no momento certo, e os livros, para mim, são como suplementos alimentares para o pensamento. Obrigado por pores isso em palavras. Identifiquei-me muito com esta reflexão.
Desde que me deparei com a ideia do Harari de que a humanidade progrediu graças à nossa capacidade de criar e contar histórias que também rumino nisto. Tanto que senti aquela ponta de ansiedade quando falaste do "The Book Eaters": quis de imediato ler e entrou direto para prioridade na TBR. A curadoria que fazemos do nosso menu, daquilo que consumimos, em todas as dimensões, é super importante. Somos aquilo que comemos, em todos os sentidos. Nas ideias e narrativas, é gritante. Gostei mesmo muito deste texto. Um abraço!