Esta terça-feira, 2 de Abril, celebra-se o Dia Internacional do Livro Infantil, que se assinala desde 1967, por ocasião do aniversário de Hans Christian Andersen, reconhecido escritor dinamarquês. O que se segue é a minha contribuição.
Nenhum dos meus pais é um leitor particularmente ávido (não me lembro sequer da última vez que os vi ler), mas os livros sempre fizeram parte da paisagem lá de casa – como uma espécie de decoração afectiva, silenciosa e cúmplice, que parecia aguardar o momento certo para capturar a minha atenção. Logo à entrada, recordo-me, havia um armário de carvalho escuro com portas de vidro, um modesto “teatro de lombadas,” que guardava desde clássicos – incluindo A Menina do Mar, de Sophia de Mello Breyner – até literatura erótica1.
Hoje em dia, sempre que pode, a minha mãe gosta de contar com um certo orgulho que o primeiro livro que tentei ler de forma autónoma, já com uns seis ou sete anos, foi Os Lusíadas (estava lá, no tal armário de carvalho). Não sei se aconteceu mesmo se é uma falsa memória, mas divirto-me a imaginar a cena. Ali estou eu, uma criança minúscula, sentada no chão de pedra, de calhamaço na mão e testa franzida. A ser verdade, devo a Camões o preciso momento em que o meu amor pelos livros começou a tomar forma – quando percebi, tcharan!, que dentro deles havia segredos que eu ainda não estava pronta para desvendar, mas que queria, um dia, fazer meus.
Mais tarde, já perfeitamente fluente na arte da leitura2, comecei a ler em voz alta com frequência. A minha altura preferida era à noite, na cama, quando o meu irmão finalmente se dispunha a ouvir-me. Foi assim que lhe li Charlie e a Fábrica de Chocolate, Artur e Os Minimeus e As Crónicas de Spiderwick3. Mas demorei pouco a descobrir (e a ficar completamente viciada) na colecção O Clube das Amigas. A partir daí, decidi tornar o ritual de leitura uma prática privada. É que cada título era um pequeno drama, cheio de paixões improváveis e dilemas de importância absoluta (pelo menos para uma pré-adolescente).
Já na escola, enquanto a maior parte dos meus colegas corria para o átrio, onde duas mesas de matraquilhos reuniam pequenos campeonatos diários, ou se encostavam aos cacifos para pôr a conversa em dia, eu ia directamente para a biblioteca. Talvez tenha sido por isso que conquistei tantas vezes o cobiçado prémio de “Leitor/a do mês”. Para mim, os livros sempre foram uma porta de entrada, não só para outros mundos, mas também, e sobretudo, para diferentes versões de mim mesma – ainda hoje, me perco e me encontro entre páginas, e agora que sou mãe, e como mãe que é leitora e que escreve praticamente todos os dias, anseio pelo momento em que a minha filha descobrirá por si mesma o encanto infinito dos livros.
Na hora de transformar o meu escritório no quarto da Teresinha, a primeira coisa que fiz – logo depois de ter mudado as minhas estantes para a sala – foi pedir ao meu pai para montar três prateleiras por cima da secretária, entretanto convertida em fraldário. (Ainda não havia berço e já havia biblioteca. Será, por ventura, o único berço que importa.) Por enquanto, sou eu quem lhe lê – a minha voz a preencher o espaço, misturando-se com os suspiros leves do sono, os barulhinhos da noite e o ranger do chão de madeira. Um dia, quem sabe, também ela seguirá as letras com o olhar, desenhando sons trémulos que se tornarão palavras seguras, frases inteiras, histórias só dela. Até lá, até esse dia chegar, tudo farei para que ela tenha oportunidade de descobrir sozinha o prazer de um bom livro.
canto da sereia, especial 1
I
Este ano, “A liberdade da imaginação” é o tema escolhido para as comemorações do Dia Internacional do Livro Infantil, e o mote a última frase do poema “A linguagem das imagens”, que integra o livro Todos os Desejos do Mundo, do holandês Rian Visser.
“A linguagem das imagens”, de Rian Visser
Consegues desenhar
as palavras,
as coisas que digo?
Desenha, então,
uma parte,
o frio,
o vento,
um nó na garganta,
má sorte,
desenha tossir,
um suspiro,
o cheiro do pão fresco,
o tempo,
um momento,
o princípio ou o fim
de um plano,
desenha um lugar onde,
o lugar onde nunca,
o lugar onde em breve,
alguma coisa vai acontecer,
desenha a dor do empurrão,
o sabor do mar.
Há tanta coisa
que desejo ver,
como o amor,
um dia,
talvez para mim.
Ilustra
o meu poema,
por favor, sente-te livre:
estas palavras
pertencem-te
ainda que venham de mim.
Tradução de Ana Castro, a partir do inglês.
II
A propósito da iniciativa Era Uma Vez Nos Jardins do Marquês, que conta com programação gratuita para famílias com crianças, irá realizar-se também uma Feira do Livro Infantil. O evento está marcado para os dias 12 e 13 de Abril, a partir das 10.00, nos jardins do Palácio Marquês de Pombal, em Oeiras.
III
Quando entrei para a Time Out Lisboa, em 2018, a editora da secção de Miúdos — a actual diretora editorial da revista — estava de licença de maternidade, e coube-me a responsabilidade de assumir a pasta. Desde então, tenho escrito sobre o universo infantil, o que reforçou a minha paixão pela literatura para os mais novos, uma área que continuo a acompanhar de perto. Por isso, aproveito agora para fazer umas recomendações4:
O Quarto (APCC, 7,50€), de Susana Moreira Marques (texto) e Inês Viegas Oliveira (ilustração);
O Duelo (Planeta Tangerina, 14,40€), de Inês Viegas Oliveira (texto e ilustração);
Noa5 (Oficina do Livro, 13,50€), de Susana Cardoso Ferreira (texto) e Raquel Costa (ilustração);
25 Mulheres (Oficina do Livro, 14,50€), de Raquel Costa (texto e ilustração);
Thanks Blanket (The Poets and Dragons Society, 11€), de Christopher Vanderkooy (texto) e Raquel Costa (ilustração);
O Som das Coisas Leves Quando Caem (Nuvem de Letras, 14,95€), de Catarina Ferreira de Almeida (texto) e Sérgio Condeço (ilustração);
Menino, Menina (Planeta Tangerina, 12,90€), de Joana Estrela6 (texto e ilustração);
As Coisas Que As Coisas Fazem Quando Ninguém Está a Ver (Orfeu Mini, 16€), de Luís Leal Miranda (texto) e Carolina Celas (ilustração).
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Sim, é provável que tenha espreitado o Kamasutra antes do tempo, mas até ver não me traumatizou.
Na Academia P, do Público, há um curso da Tinta-da-China sobre “A Arte da Leitura”, orientado pelo escritor, tradutor, ensaísta e editor argentino Alberto Manguel. São cinco aulas gravadas em inglês, de 2h cada, e custam 80€ (55€ para assinantes do jornal).
Reli a série As Crónicas de Spiderwick o ano passado, em várias idas à praia, depois de ter descoberto que a autora, Holly Black, também escreveu várias das minhas fantasias YA favoritas, como as trilogias The Modern Fairie Tales (o primeiro volume foi traduzido para português recentemente e está agora em pré-venda, numa edição da Secret Society) e The Folk of the Air (disponível em português em edições da Secret Society).
Os títulos com links reencaminham para artigos que escrevi sobre os livros, a partir da sua leitura e de entrevistas aos autores.
É dos meus livros preferidos de sempre. E reparem: não digo livro infantil de propósito, porque acho mesmo que é tão bonito e tão bem escrito que não há pessoa nenhuma que o leia e não adore.
O ano passado entrevistei a Joana Estrela a propósito de um artigo que estava a escrever para a edição de Outono da revista trimestral da Time Out Lisboa. Partilho a versão digital de Um desenho, tantas histórias – quatro ilustradores de livros infantis para ficar de olho.
❤️
Gostei muito da ideia da biblioteca como berço.